Vimos já como
Descartes, pela aplicação da dúvida metódica, assumiu a existência do
cogito, isto é, da sua existência como ser pensante. Contudo, levantava-se a
questão de existência do mundo que o rodeava. A negação do valor dos sentidos
como meio de acesso ao conhecimento verdadeiro colocava-o, de facto, perante a
situação de ter que duvidar da existência da árvore que estava naquele momento
a ver.
Descartes
aceitava que o mundo tivesse sido criado por Deus, aceitava que, se Deus
existisse, ele seria garantia e suporte de todas as outras verdades. Mas, como
saber se Deus existe ou não? Como provar a sua existência se apenas podia ter a
certeza da existência do cogito? Nas suas
obras, Descartes apresentou três provas da existência de Deus.
1ª
Prova: a priori
Pela simples consideração da ideia de ser perfeito.
“Dado que, no nosso conceito de Deus, está
contida a existência, é corretamente que se conclui que Deus existe. Considerando,
portanto, entre as diversas ideias que uma é a do ente sumamente inteligente,
sumamente potente e sumamente perfeito, a qual é, de longe, a principal de
todas, reconhecemos nela a existência, não apenas como possível e contingente,
como acontece nas ideias de todas as outras coisas que percepcionamos
distintamente, mas como totalmente necessária e eterna.
E, da mesma forma que, por
exemplo, percebemos que na ideia de triângulo está necessariamente contido que
os seus três ângulos iguais são iguais a dois ângulos retos, assim, pela
simples percepção de que a existência necessária e eterna está contida na ideia
do ser sumamente perfeito, devemos concluir sem ambiguidade que o ente
sumamente perfeito existe. ”
Descartes, Princípios da
Filosofia, I Parte, p. 61-62.
A prova é magistralmente
simples. Ela consiste em mostrar que, porque existe em nós a simples ideia de
um ser perfeito e infinito, daí resulta que esse ser necessariamente tem que
existir.
2ª
Prova: a posteriori
Pela causalidade das ideias.
Descartes
conclui que Deus existe pelo facto de a sua ideia existir em nós. Uma das
passagens onde ele exprime melhor esta ideia é:
“Assim, dado
que temos em nós a ideia de Deus ou do ser supremo, com razão podemos examinar
a causa por que a temos; e encontraremos nela tanta imensidade que por isso nos
certificamos absolutamente de que ela só pode ter sido posta em nós por um ser
em que exista efetivamente a plenitude de todas as perfeições, ou seja, por um
Deus realmente existente.
Com efeito, pela luz natural é evidente não só
que do nada nada se faz, mas também que não se produz o que é mais perfeito
pelo que é menos perfeito, como causa eficiente e total; e, ainda, que não pode
haver em nós a ideia ou imagem de alguma coisa da qual não exista algures, seja
em nós, seja fora de nós, algum arquétipo que contenha a coisa e todas as suas
perfeições. E porque de modo nenhum encontramos em nós aquelas supremas
perfeições cuja ideia possuímos, disso concluímos corretamente que elas
existem, ou certamente existiram alguma vez, em algum ser diferente de nós, a
saber, em Deus; do que se segue com total evidência que elas ainda existem. ”
Descartes, Princípios da
Filosofia, I Parte, p. 64.
A prova
consiste agora em mostrar que, porque possuímos a ideia de Deus como ser
perfeitíssimo, somos levados a concluir que esse ser efetivamente existe
como causa da nossa ideia da sua perfeição. De fato, como
poderíamos nós ter a ideia de perfeição, se somos seres imperfeitos?
Como poderia o menos perfeito ser causa do
mais perfeito? Deste modo, conclui, já que nenhum homem possui tais
perfeições, deve existir algum ser perfeito que é a causa dessa nossa ideia de
perfeição. Esse ser é Deus.
3ª
Prova: a posteriori
Baseada na contingência do espírito.
“Se tivesse poder para me conservar a mim mesmo,
tanto mais poder teria para me dar as perfeições que me faltam; pois elas são
apenas atributos da substância, e eu sou substância. Mas não tenho poder para
dar a mim mesmo estas perfeições; se o tivesse, já as possuiria. Por
conseguinte, não tenho poder para me conservar a mim mesmo.
Assim, não posso existir, a não
ser que seja conservado enquanto existo, seja por mim próprio, se tivesse poder
para tal, seja por outro que o possui. Ora, eu existo, e, contudo, não possuo
poder para me conservar a mim próprio, como já foi provado. Logo, sou
conservado por outro. Além disso, aquele pelo qual sou conservado possui formal
e eminentemente tudo aquilo que em mim existe.
Mas em mim existe a percepção de
muitas perfeições que me faltam, ao mesmo tempo que tenho a percepção da ideia
de Deus. Logo, também nele, que me conserva, existe percepção das mesmas
perfeições. Assim, ele próprio não pode ter percepção de algumas perfeições que
lhe faltem, ou que não possua formal ou eminentemente.
Como, porém, tem o poder para me
conservar, como foi dito, muito mais poder terá para as dar a si mesmo, se lhe
faltassem. Tem, pois, a percepção de todas aquelas que me faltam e que concebo
poderem só existir em Deus, como foi provado. Portanto, possui-as formal e
eminentemente, e assim é Deus. ”
Descartes, Oeuvres, VII,
pp. 166-169.
Descartes demonstra agora a
existência de Deus a partir do fato de que não nos podemos conservar a nós
próprios. Se não podemos garantir a nossa existência, mas apesar disso
existimos, é porque alguém nos pode garantir essa existência.
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